[OPINIÃO] No dia em que a esquerda voltar a ser “radical” – A encruzilhada política do Brasil
A palavra “radical” é muitas vezes usada em tons pejorativos – associada à fanatismo,
fundamentalismo, inflexibilidade. A origem da palavra, no entanto, vem de “radicalis” e
“radix” (latim) que remete à raiz. E isso logo nos lembra que todos os nossos povos originários,
como os para cá trazidos à força pelo sistema escravocrata, entendem a seguinte ideia: quem
não conhece suas raízes não pode chegar ao topo. E para quê chegar ao topo? Para estar
acima dos demais? Não, para enxergar além no horizonte. Parafraseando o genial samba
brasileiro “O dia em que o morro descer e não for carnaval” (Paulo César Pinheiro e Wilson das
Neves) o título desse texto, quer nos chamar a uma nova letra, com outras possibilidades de
rimas, e a enxergar nossa situação com uma referência da religiosidade de matriz africana: a
encruzilhada. São muitas e bem profundas as interpretações do que é
encruzilhada, mas o essencial todos sabem: é um ponto onde vários caminhos se encontram, e
de alguma forma, certas energias se concentram e tem potência.
A história do Brasil é uma história de golpes, de governos autoritários, de resistências
tamanhas. Mais recentemente as energias se concentraram em apostar em uma mudança de cenário, mas esquecemos de mudar todo o elenco: boa parte daqueles que estavam antes, nas bases do coronelismo e da ditadura, permaneceram. Temendo o mal maior, muitos se conformaram diante da farsa da anistia – que liberou assassinos e torturadores – e brigaram pela “constituição cidadã”. A palavra “ democracia” foi se tornando jargão de todo tipo de demagogia, na boca de latifundiários, megaempresários, seus representantes políticos, ao mesmo tempo em que é repetida por aqueles que nela realmente acreditam.
Os governos eleitos pelo povo sedento de mudanças no início dos anos 2000 promoveu políticas sociais e esperanças, que foram depois brutalmente desiludidas. Esses governos não eram “populares”, mas populistas. E a definição de “populista” não é simples mas já foi discutida em muitos livros que quase ninguém tem acesso: os elementos essenciais são o uso do carisma político e a política da conciliação de classes, que promove dentro do capitalismo, políticas que atendam às diferentes classes sociais, mantendo o controle dos movimentos sociais. Seu revestimento político-ideológico é a social democracia, que anda
de mãos dadas com o neoliberalismo. No limite dessa política, prevaleceu o ditado popular de que é impossível servir a dois senhores: vieram os golpes, os recuos, as concessões. E vieram Belo Monte, a invasão militar da Maré e a Lei antiterrorista. Nesse caldeirão, há anos os setores da direita se rearticulavam para dar mais um bote, em 2016. O que faz então com todas essas lições a esquerda partidária: revisão de consciência, reflexão profunda e tomada de decisão pela mudança de prática? Não! Apenas a repetição obssessiva das mesmas estratégias e defesa do mesmo projeto político anterior. Uma tímida meia culpa dos “erros” e “contradições” – seguida de reprodução infinita. Não promover a reforma agrária, a democratização da mídia e formação/renovação política do exército podem ser vistos como “erros”. Belo Monte e invasão militar da Maré foi manutenção do genocídio. “Erro” é uma palavra que refere a atos impensados e dos quais se arrepende. Até certo ponto, as velhas justificativas das pressões e limites de um “governo de coalizão” foram toleradas, culminando depois no sentimento de traição. Nos dois casos citados acima, o apelo da sociedade e a demonstração da perversidade das consequências dessas escolhas não foram suficientes. E são escolhas que exigem indústria, premeditação, planejamento. Não são apenas “erros” ou “contradições”. Contradição é dar milhões para a Globo, e depois ela mesma derrubar o governo que a fomentou. Se houvesse arrependimento, por que não uma retratação pública? Por que não uma reformulação das práticas? Soou cínica a infértil autocrítica. Mas com fantasmas de Bolsonaros à espreita, eis o novo discurso dessa ex-querda: que se denunciarmos Belo Monte, se denunciarmos a ocupação da Maré, se denunciarmos o coronelismo dos seus (nossos) sindicatos, estamos fortalecendo a direita. Que bela chantagem emocional! É o único recurso que sobrou a tais forças para impedir a difusão das verdades e a expressão das desilusões? A palavra revolução tornou a ser revolucionária, mas não tem o mesmo sentido de antes. Todas as ditaduras foram rechaçadas, e até mesmo a do proletariado, é vista com muita desconfiança. Apontar outros caminhos, outras possibilidades, por fora das carcomidas instituições da democracia representativa burguesa, é agora fazer o jogo da direita. Pois se tudo que a direita menos quer é o povo consciente da sua força, a última coisa que ela quer é que o povo enxergue e construa esse novo caminho de libertação. A última coisa que querem é o povo radical. Que compreende as causas do seu sofrimento e as combate, que se organiza e assume o seu destino. Ponto em que chegamos à conclusão de que esse argumento é vazio e sem sentido, uma armadilha. Não vamos nos dedicar à combater essas forças da ex-querda falida, porque elas mesmas sempre determinam seu próprio fracasso, mas vamos sim apontar a verdade sobre elas e as possibilidades para além delas. Não podemos ser violentados/as e permanecer calados/as por um pacto falso. Não queremos rechaçar quem opta pelo clássico voto no “menos pior”, motivado/a pelo desespero do que pode vir, nem quem procura entre os mais de 20 mil candidatos algum que se aproxime dos seus anseios. Só não vamos aprovar ou incentivar o investimento de energia e milhões em dinheiro nesses processos eleitorais, quando esse mesmo investimento poderia estar direcionado à verdadeira transformação. Mas, qual democracia queremos? Não é a representativa, disse 2013, Occupy Wall Street, a primavera árabe, os estudantes que ocuparam suas escolas. Ninguém mais acredita nesse modelo, a não ser os que dele se beneficiam. O presente/futuro chama por novas formas de organização política e social, novos caminhos, com muitas inspirações: comunismos, anarquismos, conhecimentos dos povos originários de sociedade, hippismo,feminismos, antiracismos, quilombismo, ecosocialismo, LGBT´s e tudo que nem ismo tem. Os que querem essa mudança, não querem modelos de livros empoeirados nem se convencem com frases de efeito ensaiadas. Não querem soluções vindas do norte, que ignoram todas as nossas culturas, saberes, memórias. Não obedecem mecanicamente, não reproduzem, não são mais “massa”. Não se curvarão ao carisma, a
manipulações ideológicas, não se colocam diante de líderes e discursos inflamados. São “Anonimous”, são a construção dia a dia de que é possível – por mais que já tenhamos nos esquecido disso – viver sem esse estado. É muito, mas muito difícil que as velhas gerações “com mais de 30 anos e 30 cruzeiros” entendam isso. Não só a ex-querda reformista, mas também a esquerda dita revolucionária, precisa reinventar-se. Porque esta última também se prende a modelos rígidos, a um vocabulário pouco acessível e frequentemente não dá a devida importância às lutas contra o racismo, machismo e homofobia, insistindo em formas de organização por vezes autoritárias. Mas o que aconteceu com a radicalidade de grande parte das esquerdas – envelheceram? Também. Além de terem sido gradativamente, cooptadas pelo sistema. O fenômeno não é exclusivamente brasileiro: o partido socialista francês nada tem de socialista e o MPLA, um dos protagonistas da revolução angolana, tristemente hoje se aliou ao capital e reprime os “radicais”. Um país que tem na história um quilombo que resistiu por mais de 100 anos ao poder do estado, só não avança porque ainda não reconheceu nessa história sua potência. Nossas raízes são os quilombos, revoluções e revoltas ao redor do mundo, e como diz o grande Rap da Felicidade “o povo tem a força só precisa descobrir”: não sejamos mais “base”, pois não queremos mais uma pirâmide, queremos que a “base” seja a direção e os “quadros”, libertados de suas molduras. Nós só jogamos novas sementes que os próximos fecundarão. Porque a mudança é iminente, a vitória não sabemos quando nem como, nem mesmo se será completada, mas ela está em curso. Texto desenvolvido por Maya Shakur
tamanhas. Mais recentemente as energias se concentraram em apostar em uma mudança de cenário, mas esquecemos de mudar todo o elenco: boa parte daqueles que estavam antes, nas bases do coronelismo e da ditadura, permaneceram. Temendo o mal maior, muitos se conformaram diante da farsa da anistia – que liberou assassinos e torturadores – e brigaram pela “constituição cidadã”. A palavra “ democracia” foi se tornando jargão de todo tipo de demagogia, na boca de latifundiários, megaempresários, seus representantes políticos, ao mesmo tempo em que é repetida por aqueles que nela realmente acreditam.
Os governos eleitos pelo povo sedento de mudanças no início dos anos 2000 promoveu políticas sociais e esperanças, que foram depois brutalmente desiludidas. Esses governos não eram “populares”, mas populistas. E a definição de “populista” não é simples mas já foi discutida em muitos livros que quase ninguém tem acesso: os elementos essenciais são o uso do carisma político e a política da conciliação de classes, que promove dentro do capitalismo, políticas que atendam às diferentes classes sociais, mantendo o controle dos movimentos sociais. Seu revestimento político-ideológico é a social democracia, que anda
de mãos dadas com o neoliberalismo. No limite dessa política, prevaleceu o ditado popular de que é impossível servir a dois senhores: vieram os golpes, os recuos, as concessões. E vieram Belo Monte, a invasão militar da Maré e a Lei antiterrorista. Nesse caldeirão, há anos os setores da direita se rearticulavam para dar mais um bote, em 2016. O que faz então com todas essas lições a esquerda partidária: revisão de consciência, reflexão profunda e tomada de decisão pela mudança de prática? Não! Apenas a repetição obssessiva das mesmas estratégias e defesa do mesmo projeto político anterior. Uma tímida meia culpa dos “erros” e “contradições” – seguida de reprodução infinita. Não promover a reforma agrária, a democratização da mídia e formação/renovação política do exército podem ser vistos como “erros”. Belo Monte e invasão militar da Maré foi manutenção do genocídio. “Erro” é uma palavra que refere a atos impensados e dos quais se arrepende. Até certo ponto, as velhas justificativas das pressões e limites de um “governo de coalizão” foram toleradas, culminando depois no sentimento de traição. Nos dois casos citados acima, o apelo da sociedade e a demonstração da perversidade das consequências dessas escolhas não foram suficientes. E são escolhas que exigem indústria, premeditação, planejamento. Não são apenas “erros” ou “contradições”. Contradição é dar milhões para a Globo, e depois ela mesma derrubar o governo que a fomentou. Se houvesse arrependimento, por que não uma retratação pública? Por que não uma reformulação das práticas? Soou cínica a infértil autocrítica. Mas com fantasmas de Bolsonaros à espreita, eis o novo discurso dessa ex-querda: que se denunciarmos Belo Monte, se denunciarmos a ocupação da Maré, se denunciarmos o coronelismo dos seus (nossos) sindicatos, estamos fortalecendo a direita. Que bela chantagem emocional! É o único recurso que sobrou a tais forças para impedir a difusão das verdades e a expressão das desilusões? A palavra revolução tornou a ser revolucionária, mas não tem o mesmo sentido de antes. Todas as ditaduras foram rechaçadas, e até mesmo a do proletariado, é vista com muita desconfiança. Apontar outros caminhos, outras possibilidades, por fora das carcomidas instituições da democracia representativa burguesa, é agora fazer o jogo da direita. Pois se tudo que a direita menos quer é o povo consciente da sua força, a última coisa que ela quer é que o povo enxergue e construa esse novo caminho de libertação. A última coisa que querem é o povo radical. Que compreende as causas do seu sofrimento e as combate, que se organiza e assume o seu destino. Ponto em que chegamos à conclusão de que esse argumento é vazio e sem sentido, uma armadilha. Não vamos nos dedicar à combater essas forças da ex-querda falida, porque elas mesmas sempre determinam seu próprio fracasso, mas vamos sim apontar a verdade sobre elas e as possibilidades para além delas. Não podemos ser violentados/as e permanecer calados/as por um pacto falso. Não queremos rechaçar quem opta pelo clássico voto no “menos pior”, motivado/a pelo desespero do que pode vir, nem quem procura entre os mais de 20 mil candidatos algum que se aproxime dos seus anseios. Só não vamos aprovar ou incentivar o investimento de energia e milhões em dinheiro nesses processos eleitorais, quando esse mesmo investimento poderia estar direcionado à verdadeira transformação. Mas, qual democracia queremos? Não é a representativa, disse 2013, Occupy Wall Street, a primavera árabe, os estudantes que ocuparam suas escolas. Ninguém mais acredita nesse modelo, a não ser os que dele se beneficiam. O presente/futuro chama por novas formas de organização política e social, novos caminhos, com muitas inspirações: comunismos, anarquismos, conhecimentos dos povos originários de sociedade, hippismo,feminismos, antiracismos, quilombismo, ecosocialismo, LGBT´s e tudo que nem ismo tem. Os que querem essa mudança, não querem modelos de livros empoeirados nem se convencem com frases de efeito ensaiadas. Não querem soluções vindas do norte, que ignoram todas as nossas culturas, saberes, memórias. Não obedecem mecanicamente, não reproduzem, não são mais “massa”. Não se curvarão ao carisma, a
manipulações ideológicas, não se colocam diante de líderes e discursos inflamados. São “Anonimous”, são a construção dia a dia de que é possível – por mais que já tenhamos nos esquecido disso – viver sem esse estado. É muito, mas muito difícil que as velhas gerações “com mais de 30 anos e 30 cruzeiros” entendam isso. Não só a ex-querda reformista, mas também a esquerda dita revolucionária, precisa reinventar-se. Porque esta última também se prende a modelos rígidos, a um vocabulário pouco acessível e frequentemente não dá a devida importância às lutas contra o racismo, machismo e homofobia, insistindo em formas de organização por vezes autoritárias. Mas o que aconteceu com a radicalidade de grande parte das esquerdas – envelheceram? Também. Além de terem sido gradativamente, cooptadas pelo sistema. O fenômeno não é exclusivamente brasileiro: o partido socialista francês nada tem de socialista e o MPLA, um dos protagonistas da revolução angolana, tristemente hoje se aliou ao capital e reprime os “radicais”. Um país que tem na história um quilombo que resistiu por mais de 100 anos ao poder do estado, só não avança porque ainda não reconheceu nessa história sua potência. Nossas raízes são os quilombos, revoluções e revoltas ao redor do mundo, e como diz o grande Rap da Felicidade “o povo tem a força só precisa descobrir”: não sejamos mais “base”, pois não queremos mais uma pirâmide, queremos que a “base” seja a direção e os “quadros”, libertados de suas molduras. Nós só jogamos novas sementes que os próximos fecundarão. Porque a mudança é iminente, a vitória não sabemos quando nem como, nem mesmo se será completada, mas ela está em curso. Texto desenvolvido por Maya Shakur
There are 2 Comments
Democratização da mídia é
Democratização da mídia é ESSENCIAL! É de fato o maior poder do Brasil e as informações que veicula nao podem ser filtradas por uns poucos, deve funcionar de forma orgánica fundamentada no conceito universal que cada um de nós sendo jornalista ou nao, é em essencia um reporter.
Temos, como povo pret@ e @s
Temos, como povo pret@ e @s originári@s da terra muito conhecimento sobre radicalismo, só basta a esquerda predominantemente branc@ deixar de lado seus Deuses como Marx, Bakunim, Lenim um pouco de lado é buscar descolonizar seus pensamentos da influência eurocêntrica, pois @s radicais daqui como indigenas e african@s escravizados sempre se organizaram radicalmente para se opor a este sistema colonial que se mantém até hoje. Todas insurreições realizadas pel@s meus ou minhas ancestrais foram pensadas e executadas.
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